2005/07/13

Curso Breve de Literatura Brasileira

Noticia hoje o Diário de Notícias o que a seguir transcrevo, com texto da jornalista Isabel Lucas:

"Publicar autores brasileiros que acrescentem a "sabedoria literária ocidental". É este o critério que está na base de Curso Breve de Literatura Brasileira, uma colecção de 16 volumes editada pela Cotovia e dirigida pelo ensaísta e professor de Literatura Brasileira da Universidade Nova de Lisboa Abel Barros Baptista. Do romance ao conto, da poesia à crónica, passando pelo teatro. Os clássicos, os desconhecidos, alguns inéditos e outros esquecidos. Desde o século XIX à actualidade e sem perder de vista o propósito inicial "divulgar obras e autores que seriam originais em qualquer língua e com contribuições para a literatura de qualquer país", explicou ao DN Abel Barros Baptista.

Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto são alguns dos autores cuja "grandeza" não depende do âmbito nacional da literatura brasileira e que têm um alcance universal. Ainda que, muitas vezes, não inteiramente reconhecido, como esclarece Abel Barros Baptista, responsável pela selecção. "São autores que fizeram coisas inovadoras, originais", acrescenta. Há ainda os que, não tendo essa dimensão, determinaram a história das letras no Brasil.

De costas voltadas. O diagnóstico acerca do grau de conhecimento mútuo das duas realidades literárias portuguesa e brasileira parece simples de fazer. "Somos estrangeiros na mesma língua", declara Abel Barros Baptista.

Razões históricas e culturais podem explicar este convívio difícil entre o modo como o português de Camões evoluiu num e noutro país e, apesar das tentativas para contrariar ou minimizar os efeitos do afastamento - seja através de prémios que estimulem o conhecimento mútuo de autores, seja com a edição de revelações -, certo é que a aproximação tarda a acontecer. É neste contexto que surge esta colecção, a qual, segundo os seus mentores - André Jorge, responsável pela Cotovia, e Abel Barros Baptista -, "não tem a pretensão de mudar as coisas", mas de tornar disponíveis ao leitor português "as principais obras da literatura brasileira".

A começar pelas memórias. "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte." A primeira frase do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, inaugura a colecção. Organizada cronologicamente - ainda que não de forma muito rígida -, começa com Assis, segue com As Aves Que Aqui Gorjeiam, uma colectânea da poesia do romantismo ao simbolismo, e repete Machado de Assis com a antologia de contos Um Homem Célebre. São estes os três títulos já disponíveis. Os restantes livros serão editados ao ritmo de um por mês e estima-se que a colecção esteja completa dentro de um ano.

Machado de Assis é, aliás, o único nome na ficção com direito a bis. "É o primeiro clássico importante da literatura brasileira", refere Abel Barros Baptista . E se a publicação de As Memórias Póstumas de Brás Cubas se explica por ser o primeiro grande romance de Assis, já a antologia de contos precisa de mais demoras na justificação. "Os contos são uma face muito ignorada do trabalho de Machado de Assis em Portugal. E estamos a falar, seguramente, do maior contista de língua portuguesa, além de ser um dos contistas a nível mundial que mais contribuíram para o estabelecimento do que hoje chamamos conto moderno. As pessoas sabem que ele é contemporâneo do Maupassant e do Tchekhov - autores geralmente apontados como os pais do conto moderno -, mas quando eles publicaram o primeiro livro já o Machado de Assis tinha publicado três livros de contos. É um contemporâneo que, em certa medida, antecipou muito do que eles viriam a fazer. O facto de escrever em português não lhe deu a visibilidade que merecia ter."

Feita a justificação do direito a bisar conferido a Machado de Assis, também os poetas Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira repetem a assinatura em mais do que um volume. Um e outro estão representados na antologia dedicada à poesia do modernismo de 20 a 30, "oito anos de transformação rápida e violenta não apenas da poesia mas da literatura e até da cultura e da sociedade brasileira. Eles estão lá representados porque integram o grupo dos principais poetas modernistas", como salienta Barros Baptista. Além disso, cada um tem um volume sobre a sua própria produção poética. (ver lista das obras).

O caso Drummond. Importa isolar aqui Drummond de Andrade e o título Claro Enigma (1951), considerado um livro de viragem na poesia brasileira. Editado quase a meio do século, passam por lá muitos dos problemas da poesia do século XX.

A leitura do seu legado é feita, mais uma vez, por Abel Barros Baptista. Estão lá a relação muito discutida na época entre poesia social e poesia pura; a reacção ao fim da II Guerra; o problema da militância política, do empenhamento do escritor; a questão, que depois se tornou banal, da relação do escritor com a tradição literária ocidental, e em particular com a portuguesa; a recuperação de formas do passado, como o soneto, que tinham sido abandonadas pelos modernistas. No fundo, o problema de como continuar a ser moderno depois da aventura modernista e a interrogação sobre a possibilidade de ser moderno recorrendo a formas antigas, que é um ponto importante ainda hoje em Portugal e que está naquele livro de uma forma muito aguda".

Dignos de antologia. Estas obras fundamentais assentam em dois pilares originais publicados na íntegra e antologias dedicadas a momentos particulares da literatura brasileira ou a géneros específicos (como o teatro de Nelson Rodrigues, que encerra a colecção).

No caso da poesia, há dois períodos a isolar. O modernismo da década de vinte, uma época de transformação com poetas que vão definir muito do que será a literatura brasileira do século XX. O outro situa-se na dica de cinquenta e é personificado na figura de João Cabral de Melo Neto, com repercussões em Portugal e uma "descendência um pouco heterodoxa", como chama Barros Baptista aos poetas concretos e neoconcretos. João Cabral de Melo Neto terá um livro autónomo, mas todos os poetas que começaram a trabalhar sob sua influência "directa, indirecta ou reclamada" serão objecto de uma antologia. O objectivo é só um. "Dar uma imagem desse filão da poesia brasileira que se mantém activa, ainda que os concretistas já não existam." E serve-nos a adjectivação para classificar essa poesia que lhe era tão avessa e próxima dos princípios de João Cabral de Melo Neto. A secura, a concisão, o lado substantivo da palavra, a experimentação e, sobretudo, o poema enquanto construção, "um lado construtivista muito forte e que está ainda muito presente na poesia brasileira, também objecto de uma antologia", esclarece o responsável por este Curso Breve...

No caso dos contos, a antologia dá privilégio a autores pouco conhecidos em Portugal, pelo menos enquanto contistas. Exemplo disso é Ruben Fonseca. Poucos terão a referência de que este escritor que venceu o Prémio Camões em 2002 foi um renovador do conto brasileiro nos anos 60. João António e Dalton Trevisan são outros dos nomes considerados fundamentais na arte das narrativas breves. A crónica, género de excelência no Brasil, é também alvo de antologia. Cultivada pelos principais nomes das letras, como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, tem em Ruben Braga a maior referência.

Inéditos e uma grande ausência.

Entre os pontos de interesse desta colecção está o facto de editar pela primeira vez em Portugal livros que marcaram a cena literária no Brasil. É o caso de Os Ratos, de Dyonelio Machado, romance da segunda metade do modernismo que conta o drama do protagonista, que se vê na iminência de não poder alimentar o filho. Ainda O Amanuense Belmiro, de Cyro do Anjos. Um romance político-existencial, situado em Belo Horizonte, em 1930. Outro inédito é A Menina Morta, de 1956, assinado por Cornélio Penna, uma história de mulheres desencadeada pela morte da filha de um fazendeiro em vésperas da abolição da escravatura.

Grande Sertão Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, não está incluído. Uma opção que se deve à extensão da obra, à existência de várias edições no mercado e, sobretudo, à dificuldade em negociar direitos com os herdeiros do escritor.

Sem a sua obra de referência, cabe a Primeiras Estórias representar a inventividade de linguagem de Guimarães Rosa, numa versão que mantém a grafia original. Uma característica comum aos 16 títulos da colecção. "Tomámos a decisão de não mexer nos textos. Adopta-se uma edição e segue-se esse texto. Com alguns prós e contras, isso ajuda a habituar os portugueses à leitura dos textos brasileiros".

Afinal, segundo Abel Barros Baptista, é aí que reside a origem de todo o problema do desconhecimento."

Aqui fica também a listagem de todos os títulos da colecção:

" 1. Memórias Póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis

Introd. de Abel Barros Baptista

2. As Aves Que aqui Gorjeiam. A Poesia do Romantismo ao Simbolismo

Org. e introd. de Paulo Franchetti

3. Um Homem Célebre. Contos

Machado de Assis

Org. e introd. de Abel Barros Baptista

4. Seria Uma Rima, não Seria Uma Solução. A Poesia do Modernismo

Org. e introd. de Abel Barros Baptista e Osvaldo Silvestre

5. Libertinagem

Manuel Bandeira

Introd. de Roberto Vecchi

6. O Amanuense Belmiro

Cyro dos Anjos

Introd. de Alcir Pécora

7. Os Ratos

Dyonelio Machado

Introd. de Ettore Finazzi-Agrò

8. Claro Enigma

Carlos Drummond de Andrade

Introd.de Abel Barros Baptista

9. A Menina Morta

Cornélio Penna

Introd. de Roberto Vecchi

10. Primeiras Estórias

João Guimarães Rosa

Introd. de Clara Rowland

11. Laços de Família

Clarice Lispector

Introd. de Carlos Mendes de Sousa

12. A Educação pela Pedra

João Cabral de Melo Neto

Introd. de Carlos Mendes de Sousa

13. A Poesia "Pós-Cabralina" Concretos e depois

Org. e introd. de Carlito Azevedo

14. Cronistas Modernos

Org. e introd. de John Gledson

15. O Conto Contemporâneo

Org. e introd. de Alcir Pécora

16. O Teatro de Nelson Rodrigues

Org. e introd. de Bernardo Carvalho"