2005/12/07

A literatura e a vida (2)

Transcrevo o texto "Os Lusíadas", de Francisco José Viegas, a partir do Jornal de Notícias:

"Aideia é que é necessário conhecer "Os Lusíadas". Não me parece que conhecer "Os Lusíadas", de trás para a frente, seja uma falta muito grave e que a cidadania assente num conhecimento minucioso do episódio da Ilha dos Amores ou na capacidade de declamar as suas cinco primeiras estrofes. Suspeito, aliás, que a versão "cidadã" de "Os Lusíadas" seja banal e desinteressante. Considero o texto de Camões uma epopeia politicamente incorrecta para os dias de hoje, divertida e achincalhante, onde se prega o heroísmo português e se gaba o arrivismo, a soldadesca e o sentido de aventura dos marinheiros que mataram o que puderam e gozaram bastante fora dos muros da Pátria cinzenta e malcheirosa. É o poema do andarilho português e uma das mais belas epopeias, comparável à "Ilíada" (Harold Bloom diz que é superior).

Não sei se um presidente da República deve recitar o poema em público. Admito que sim, se estiver para aí virado. Imagino facilmente, e não me choca, que Manuel Alegre evoque Camões quando lhe apetecer; ele tem uma leitura pessoal e respeitável de "Os Lusíadas". Ocupou-se dela, reflectiu e não assenta em banalidades.

Ora, eu cito "Os Lusíadas" porque Mário Soares levanta permanentemente a questão do "humanismo" e do "perfil humanista" dos candidatos a Belém. Sinceramente, é um assunto que me preocupa muito pouco. Já me preocupou em tempos, mas sei hoje que a instrumentalização da cultura e dos autores é uma arma medíocre. Aliás, a propósito de "humanismo" (que é tomado, erradamente, por "conhecimento das belas letras"), não percebo por que é que os "humanistas" têm de conhecer "Os Lusíadas" mas podem ignorar Verney (que detestava Camões), Ribeiro Sanches, Luiz da Cunha, Francisco de Hollanda, Ribeiro de Macedo, Herculano, ou os polemistas do século XIX.

Mas o que está em causa é "um presidente que dê a ideia de ser um homem culto". A ideia é que ele respeite "a cultura" (a gente que assina documentos públicos e tem poder no "sistema cultural" e nas "associações do sector"), os músicos e os cineastas. Não é má ideia, tirando que a literatura não se faz nas "associações do sector" e que a cultura não é propriedade do "sistema cultural" e do complexo de cargos para que há nomeações e comissariados. O que me incomoda, e sempre incomodou, é a imagem do político que gosta de reunir essa gente e que treme de comoção quando "os artistas" lhe dizem que estão muito honrados por serem aceites na corte.

Um presidente que respeite a cultura e que não suborne os escritores, os músicos, os pintores, é bom. É magnífico. Mas eu prefiro que, além disso, o presidente deixe "a cultura" em paz e que, em vez disso, seja honesto, imune a pressões corporativas e pedidos de favorecimento, e seja incapaz de pressionar "a cultura".

Quais são os livros de Soares? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. E quais são os livros de Alegre? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. E quais são os livros de Cavaco? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. Esqueci-me de Pessoa e de Eça ou Camilo, mas o leitor fará a lista mentalmente. Ora, esses livros são os "nossos livros", o nosso cânone e, curiosamente, livros que até já nem se estudam nas nossas escolas por obra e graça dos ministros da Educação desde os anos 80.

Como cada um deles lê "Os Lusíadas"? Não me interessa. Se eu quiser especialistas em Camões, leio Jorge de Sena, Graça Moura, Hélder Macedo, Aguiar e Silva, etc.. Eu quero que ele, o presidente, se ocupe do país, não que me dê más lições de literatura.

Se as eleições se transformassem numa sabatina, até imagino que teríamos uma surpresa. Mas eu não gostaria de ver os cidadãos mergulhados nessa metafísica tarefa de comparar conhecimentos literários. Seria um espectáculo triste."