2005/08/19

"Do neo-realismo ao novo realismo"



É este o título da interessante recensão que Pedro Mexia faz hoje no Diário de Notícias, ao livro de Rosa Maria Martelo Em parte incerta. Aqui deixo o texto transcrito:

"Em Parte Incerta, de Rosa Maria Martelo (docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto), é ao mesmo tempo um estudo de vários poetas contemporâneos, um ensaio sobre grandes tendências e um antídoto contra leituras apressadas e outros equívocos.

A viagem começa com José Gomes Ferreira. Rosa Martelo lembra que autor empírico e autor textual não se equivalem e investiga em que medida os poemas de Gomes Ferreira são vividos e em que medida são construções textuais. Embora um poeta militante escreva naturalmente poesia militante (comum na época), essa militância incluiu também um alargamento do domínio poético, que abrange tanto o trivial como o político, registando as reacções poéticas do sujeito ao mundo. O comprometimento político de Gomes Ferreira nunca eliminou uma obsessiva deambulação pela cidade nem uma tentativa de auto-retrato que passava pela noção (nada modernista) de "sinceridade". Nessa retórica, com aspectos lúdicos evidentes, é muito importante a função dos parêntesis que abrem os poemas, e que mantêm um estatuto ambíguo. Títulos? Epígrafes? Notas? Paratextos? Rosa Martelo explica que esses parêntesis acentuam o aspecto comprometido dos poemas (porque explicitam ocasiões por vezes não explícitas no corpo do texto) mas também introduzem o circunstancialismo e a ironia. Ao mesmo tempo, a ensaísta nota que o poeta revia e alterava os textos, pelo que a espontaneidade é uma espontaneidade largamente encenada. Este ponto é interessante porque diz respeito a algumas coordenadas do neo-realismo também estudadas nesta colectânea.

O neo-realismo, como sabemos, surge muito empenhado no anti-presencismo, contestando o esteticismo e umbiguismo de Régio e outros. Mas não existe só uma recusa existem também prescrições. Não é por acaso que Álvaro Cunhal intervém numa polémica de âmbito estético, esclarecendo que a estética não é tudo, e defendendo uma arte de cunho efectivamente propagandístico. Além da agenda política marxista, é também exigida uma comunicabilidade com as massas que não consente desvios individualistas. Nesse sentido, JGF foi um poeta ao mesmo tempo ortodoxo (politicamente) e heterodoxo (pelo egotismo).

Mas Rosa Martelo lembra outros casos singulares, que desmentem uma suposta unicidade do movimento. O exemplo mais flagrante é Carlos de Oliveira, discutido com alguma demora nestas páginas. Carlos de Oliveira tem sido considerado o melhor poeta próximo do neo-realismo muito por causa do seu afastamento face ao neo-realismo dominante. Esse afastamento concretizou-se numa mudança ocorrida em 1963 (com Cantata) mas também com a reescrita das obras anteriores, reescrita completa e completamente radical. Oliveira começou num realismo socialista mais programático, mas evoluiu numa linha que se afastou do dogmatismo e da subalternização do estético. Mais pessimista, mais trágico, adepto de um enorme investimento formal, Oliveira não abandonou o materialismo marxista, mas deixou uma poética da representação de matriz ingénua e exclamativa e partiu para um trabalho sobre a linguagem. Uma linguagem vigiada, depurada, feita de texturas e micropaisagens. Mesmo sem ruptura ideológica, aconteceu uma evidente ruptura literária a mudança e depois a reescrita moldam um poeta (e ficcionista) novo. Rosa Martelo discute algumas noções problemáticas, como a autoridade do autor sobre a obra passada e a noção de texto definitivo. E conclui que Carlos de Oliveira não evoluiu mas procedeu por camadas, num magma oficinal que condicionou (positivamente) o conseguimento e a unidade global (retroactiva). Há nisso "um efeito de invariância produzido pela reescrita", dada a "intervenção de um momento de escrita posterior sobre as fases precedentes, tendendo a especificidade destas a diluir-se sob a acção de uma poética amadurecida" (pág. 85).

As consequências são claras uma potencial terceira geração neo-realista foi duramente contestada por autores que sendo ainda genericamente de matriz marxista assumem um experimentalismo transgressivo e tendencialmente hermético. Não é por acaso que Carlos de Oliveira aparece como mestre de Gastão Cruz e de outros poetas que na década de 60 operam uma pequena revolução, no sentido de uma literatura de resistência, mas não de intervenção. Rosa Martelo analisa em especial a importância crescente do corpo na poesia portuguesa, primeiro em Eugénio e depois em Luiza Neto Jorge, Al Berto, Luís Miguel Nava.

Curiosamente, esse percurso é de algum modo invertido nalguns poetas mais novos, proponentes de um novo realismo, em tom menor, narrativo, concreto, de tensão mais emocional que verbal. Esse novo realismo não é politizado (tem tendências niilistas), mas volta à componente figurativa, prosaica, comunicativa, sem vontade de rupturas óbvias. É uma poesia que demonstra menos apuro formal e que recupera experiências comuns (demasiado comuns, segundo alguns). E que também desmente ideias lineares sobre evoluções literárias (mesmo porque há entre os novos caminhos muito diversos).

É esse eterno retorno e esse movimento perpétuo da poesia portuguesa que estes ensaios documentam com clareza e minúcia, e sem facciosismo de espécie alguma."